conversando com irene

terça-feira, 5 de julho de 2011

PREFÁCIO DE UMA SAUDADE


Foram alguns anos convivendo com ele, pela manhã, sentava ao colo e pedia a bênção, beijava vergonhosamente o rosto e ele respondia com um quase sofrido sorriso de um coração já idoso e castigado pela vida:
_ Deus te abençoe, filha!
Eu me arrumava, tomava o café ralinho e doce de minha mãezinha, pedia a benção também e ia pra escola, às seis horas da manhã, com aquela frase de benção fervilhando minha alma de criança. Ritinha e Rosinha eram minhas companheiras, íamos brincando e sorrindo pelas ruas de chão do Funil, até na entrada (ou saída) do Alto, ali já era calçamento de paralelepípedos.
Tia Eubéia era a professora mais linda e a melhor do mundo; minha escola, não tinha outra que fosse melhor, minhas manhãs eram as mais felizes que alguém poderia ter, mas o melhor de tudo era voltar para casa e encontrar meu pai sentado no toco de pé de coco feito de banco no quintal e ali aos pés daquele velho senhor de negras faces e traços marcados na carne pelo tempo e as lutas, ouvir suas fascinantes histórias e aventuras, seus conselhos e causos...
Lembro de um causo que era sempre motivo de muitos risos entre nós quando papai contava que: uma certa noite saiu pra caçar e era quaresma. Segundo antigas crendices, nesse período, é proibido caçar, a mata afugenta os mais exímios caçadores. Mas meu pai esqueceu disso e foi caçar levando a cachorrada com ele. De repente, no escuro da mata, ouviu um assovio e os cachorros seguiram o barulho, porém assustados e chorando do jeito que cachorro chora quando tem medo... meu pai foi atrás, ouviu de novo, agora no fundo de um buraco que parecia ser de tatu, e a cachorrada oiriçada latindo e chorando em volta do buraco, arranhando o chão e deitando com as orelhas baixas e o rabinho entre as pernas.
Sem entender o “porquê” da cachorrada boa de caça agir daquele jeito, papai espia dentro do buraco e de lá do fundo ouve mais um assovio, e um jato de terra enche seu olho curioso e um vulto preto sai do oco do buraco num vento de arrepiar os cabelos do nego velho. Era um saci...
Papai não ficou para as apresentações, saiu correndo sem olhar para trás e a cachorrada medrosa junto. Chegou em casa com a cara suja de terra, o coração na mão e o embornal vazio. Mamãe pergunta pela caça e ele diz:
_ Que nada de caça, Téta, minha capivara veia! Eu achei foi um saci, ... mas ocê num queria que eu trouxesse o raio do muleque treteiro pra casa né, mulé?!!!
Esse e outros causos ele contava rodeado da filharada sentado no toco de coco feito de banco na sombra da mangueira de nosso quintal de chão batido... lembrar dessas coisas numa lembrança doce faz-me sentir de novo a presença de papai e de mamãe, ...o cuidado e o amor de meus velhos pais são o prefácio de uma saudade gostosa que perdura pra sempre em mim...



(Irene Cristina dos Santos Costa – Nina Costa, 05/07/2011)
Publicado no Recanto das Letras em 05/07/2011
Código do texto: T3076193

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